Estalo os dedos, me espreguiço
Posto um texto antigo que as pessoas reagem com uma porção de bocejos. De modo que volto, então, aos textos inéditos. Estalo os dedos, me espreguiço. Como é difícil não poder seguir a minha real vocação — a de vagabundo. Abdico das limonadas, dos passeios em parques em que proclamo ‘Recife, esta bela cidade’. Lembro que as pessoas já não aguentam mais o meu bairrismo — portanto, o evito. Pratico, por minha vez, o que as redes chamam de a estética dos afetos. Me sento numa poltroninha, converso com meu velho pai. Ele pratica a incorreção sem pressas enquanto eu me divirto. É o Gran Torino sem os vizinhos asiáticos, sem o histórico de guerras, sem a xenofobia. Mas estão lá os mesmos brios. A mesma devoção aos princípios.
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Estou preparando três ensaios leves sobre o João Cabral de Melo Neto. Neles, analiso três pontos do John (eu o chamo de John, como um amigo fraterno). A sua paixão por cidades, seu ignorado lado amoroso, e sua arte de admirar sem restrições, derramadíssimo — em um cada vez mais raro ato de chamar os heróis de heróis, ou gênios de gênios, etc. Os três temas, claro, também são obsessões minhas como leitor, de modo que interrompo as análises para falar um pouco de mim próprio, esse desagradável costume que irrita tantos amigos e seguidores. Peço, aliás, adiantadas desculpas aos seguidores.
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Adoramos afetar interesses em guerras e conflitos antigos — nós, que fenecemos no terceiro espirro; ou justamente por isso.
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Gosto de rock, mas poucas coisas me trazem maior prazer do que ouvir baladas soul antigas. O Soul está morto, mais até do que o velho gênero marcado por rebeldia e guitarras, mas há algo que perdura quando exposto com verdade e grafado em discos. Onde desejo chegar? Nas baladas do The Isley Brothers. A paz existencial de se escutar canções em inícios de dias, em fins de tardes. As madrugadas que seguem melodiosas nessa grande companhia. Se há alguma sabedoria em dormir cedo, em acordar quando os primeiros galos cantam, eu abraço como um último aceno a certa vida rocker, pois ainda gosto muito da vida noturna, ainda que a aproveite mais dentro do que fora de casa. Aguardo a sabedoria vital, abdicando de pressas, dormindo melhor, mas sem abrir mão de Voyage to Atlantis nos fones que eliminam todo o barulho ambiente — muito embora algo na grande música naturalmente irreleva o que está ao redor.
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Não suporto o Instagram, mas às vezes entro lá e espio europeus com suas fotos de livros e paisagens bonitas. Morar em alguns países deve ser como poder alternar um poema singelo de Apollinaire com contemplações em parques. Dez minutos de poemas, e dez de contemplações. Como temos pouco o que contemplar como beleza nas grandes cidades, todo brasileiro precisa ler o dobro de poemas do europeu médio, concluo. Se soa viralatismo, lamento. Não abro mão de meu viralatismo poético. Todo autocuidado — termo tolo, mas em voga hoje em dia — deveria iniciar sempre pelo espírito.
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Mais em casa do que na rua e poetizo o trabalho remoto. Há algo que se ganha no turbilhão do mundo, certamente, especialmente quando se mira alguma intenção artística. Haverá sempre algum Proust que escreveu como poucos encerrado em quartos, mas a maioria dos grandes estetas caíram no mundo, foram homens de seu tempo. Em casa, ouvindo canções de rádio, às vezes me pergunto: mas quem disse que quero ser um grande nome de qualquer coisa? Uma mulher querida, uma choupana, uma porção de filhos cativos, uma biblioteca. De que mais um homem precisa? Talvez um blog ameno para cultivar entre searas e colheitas, e criar um cachorrinho nos enobreça mais do que qualquer obra-prima.
Desde então miro o trabalho remoto, praticado de ceroulas. Amigos dizem que romantizo, que também não é assim. Desconfio dos amigos. Deve haver algum clube em que combinem desestimular a ideia do trabalho remoto com medo que todos corram para essas áreas e tirem o trabalho dessa protegida sociedade de castas.
Refastelado no sofá, ouvindo agora For the Love of You, Pts. 1 & 2, dos Brothers (citados acima), alternando ensaios culturais, policiais, e alguma ficção mais séria. Vou ao computador, escrevo o texto que me pediram, e cogito a possibilidade de produtoras estarem precisando de roteiristas (mando alguns currículos). Não é uma grande vida? Bem, me soa como uma grande vida. Enquanto isso, coloco as mais românticas do George Benson. Vocês devem estar sorrindo do meu gosto, mas sou assim mesmo, francamente brega, moldado por rádios antigas.
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E sem pressa, estalo os dedos, me espreguiço. Leio e escrevo. Danço um pouco as baladas do Benson; vou ao pátio do condomínio. Sabem, estava até com certa saudade da escrita.
Volto com a parte II em alguns dias.