Maverico, em: April in Paris

Filipe Pereira
6 min readMar 13, 2024

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(um conto)

Se um homem é a comunhão de suas dores, naquela noite eu era também a comunhão de algumas músicas. Toda cidade à noite é um pouco fílmica, e eu aguardava da janela, que Recife, naquele 16 de abril, ressoasse como um noir triste povoado por jazz e alguns tiros que eu tanto assistia no Art Palácio, no centro da cidade — sempre sozinho; sempre à noite.

Me chamo Maverico, e essa é como uma daquelas histórias narradas em primeira pessoa. Traço planos para uma autobiografia de meus saudosos anos como repórter no Diário de Pernambuco, onde cobri mortes por bons sete anos — tempo suficiente para me tornar cínico, mas aconteceu de eu me tornar um romântico inapelável de temperamento festivo. Tento povoar com charme, hoje, o que era somente degradação. É sempre divertido escrever. E tenho quase tudo anotado, como uma obsessão. Considero o diário pessoal o último grande gênero.

Ouvia um Nat King Cole, Stardust. O King Cole sempre nos traz memórias dos verdes anos.

Me chamo Charles Maverico por homenagem, é claro, ao fatídico carro (uma raridade nas ruas recifenses já naquela época, os anos 1970, mas um fascínio pessoal para mim). Era um pseudônimo que eu personificava: imponente, inviolável, inesquecível; como um comercial antigo. Mas para os não íntimos eu era apenas Charles. Maverico eu guardava para os informantes, às paixões, e alguma literaturice. Naquela época todo jornalista do turno da noite sonhava em ser o novo Nelson Rodrigues, ou um Octávio Ribeiro Malta, o Pena Branca.

Mas eu não. Eu sempre quis ser apenas eu mesmo.

De minha janela eu aguardava paciente uma rixa entre bicheiros e a chegada de Dolores, que chegaria com seus indefectíveis ares de cantora de Tango — o batom forte, a cadência rítmica, os quadris. Era uma bela mulher. Hoje as redações estão infestadas de pederastas, mas em 1979 sabíamos viver. Todo jornalista era apaixonado por uma perdida idílica de canto suave. Cantava com gosto os clássicos com que a Elizeth Cardoso outrora emocionou estádios. E quando há comunhão de gostos, todos os defeitos humanos são obliterados.

E daí que era puta?, eu pensava, me barbeando.

Eu estava especialmente melancólico para uma noite que se mostrava produtiva. Naquela data, oito anos atrás, o meu velho pai nos deixaria. Um homem jamais supera a morte de um pai amoroso. O Negro esplêndido, ressoando com um canto triste por toda a casa não me deixava muito melhor. Eu estava mais sóbrio que o Dom Hélder sorrateiro, defendendo comunistas, e aguardava, sem ansiedade, uma cinematográfica morte de bicheiros. Eu entraria na redação do jornal de uma da manhã, solene e invejado, com meu furo para uma grande reportagem debaixo do braço.

O relógio ainda marcava onze. Em poucos minutos iria descobrir se um homem podia, ao mesmo tempo, tirar fotos, praticar o amor, e dançar simpáticos boleros — ou se constitui uma impossibilidade física. O meu palpite era que não. O amor nasceu para refutar essas questões Newtonianas, ou de algum outro ressecado que se dedicou por tempo demais a atividades tão alheias ao coração e ao espírito.

Triste, desliguei o negro esplêndido — que meu pai amava — e liguei o Charlie Parker, que ele jamais ouviu. Eram os únicos discos sofisticados que eu tinha. Discos importados sempre custaram uma fortuna.

O meu pai me ensinou tudo, aliás, até a fotografar e a caçar informantes— apenas o sexo descobri sozinho, essa viagem cuja teoria e prática, mal ou bem, é sempre uma viagem decisiva, personalística. Há, nessas viagens pessoais, o fascínio que produz cada descoberta. Um homem é um eterno ator de teatro apresentando espetáculos solos; ou um ator de cinema dirigindo com o seu maverick por ruas tristes, repletas de putas, em Recife, desviando de pessoas que desconhecem os sambas-canções escritos pelo Assis Valente, pelo Antônio Maria.

Talvez Dolores viesse ao longe. A altura, os quadris — ela inteira, como uma espécie de império (Donne). Mas não, não era. Era uma das mulheres da rua das moças. No outro dia, Dolores me pediria para ver O Exorcista — neguei, temendo que fôssemos vistos. O comentário geral era que as pessoas estavam desmaiando em plena sessão, possuídas pelo demônio, e o que o filme não era de todo ruim, muito embora anti-cristão — o que me incomodava, pois sempre prezei duas ou três instituições, entre elas, a do altíssimo. Porém, gostaria de ver.

Mas naquela noite, eu ainda ouvia April In Paris, o disco. Nunca suportei o jazz, mas me impunha algumas exceções.

Eu tinha trabalho a fazer. Ouvi de um informante que dois bicheiros famosos na época, entre eles o Vavá, sujeito violentíssimo e fatídico corno, resolveria ali uma questão de chifres. Era uma época de solenes bicheiros, aquela. Eu nunca consegui dar um furo jornalístico, assim, em toda a minha vida, mas na época não sabia disso, de modo que estava ansioso. Sempre achei que o Brasil só se compreenderá enquanto povo quando contar a história de todos os seus violentos bicheiros — há, em cada biografia de bicheiros, a melancolia e violência evidente de uma nação que precisa rememorar com delicadeza ou bravura o que há de mais degradante em seu passado, sob pena de jamais compreender-se. Parte importante de nossa história recente veio da vida desses homens; somos como tímidos afluentes de suas incontáveis desordens e desgraças.

Dolores tardava a chegar porque era casada; eu também era casado, mas disso não tratarei pois em literatura as anormalidades devem anteceder o rotineiro, e meu casamento era de uma retilineidade massacrante. Na vida, ouvi de um amigo, é necessário uma mulher para viver e uma outra, para amar. É como um acordo tácito, onde todos lucram — a esposa, o pobre marido, e a manutenção do matrimônio. Ainda que nem todos saibam ou aceitem, é uma situação amoral mas profundamente vantajosa.

Eu ainda estava na janela, segurando uma máquina de fotografar. Esta é, portanto, uma história sobre espera. A paciência surge como uma espécie de subtema. E a paixão amorosa, algo que aparece e vai embora, dentro de um subtema.

O relógio batia doze da noite. O telefone toca, abaixo o som de April in Paris, esperando que a ligação valha a pena. Mas o que ouço é triste: o bicheiro Vavá matou, ele mesmo, o amante de sua mulher com oito facadas no banheiro de uma boate em boa viagem, e acabou fugindo do local. O caso raro em que o próprio homem resolvia suas coisas, e não relegou para terceiros. Lembro que lamentei, pois queria fotografar cada uma das oito facadas daquele homem que veio do nada e cresceu em parte por uma psicopatia que exaspera e fascina. O Vavá, enquanto viveu, foi um mito entre recifenses. Lhe sobrava estilo e fúria criminosa. Falava com a calmaria de um sábio. Era um homem dedicado à elegância, essa que é, antes de tudo, um hábito. Talvez ouvisse April in Paris enquanto dançava com sua esposa, a ex-prostituta Dália — que ele próprio mataria dois anos depois, novamente corneado. Sempre foi um homem avassalador com inimigos; e avassalador, com amadas. Tinha, no falar, realmente a cadência de um velho professor

E aquela foi, mais do que de esperas, uma noite de perdas.

Aumentei o volume de um jazz estúpido, me sentei numa cadeira de balanço e pensei que sempre estamos atrasados para alguma coisa. Nascemos sempre no dia posterior.

Certos homens devem tudo à sua fama de selvagens, continuei pensando, admirando uma noite particularmente vazia — poucas coisas aumentam mais nossa noção de vazio do que uma canção elegante, de filmes antigos. E fico pensando em como o jazz é um gênero delicado mas repetitivo, diferente de algum Johnny Alf cantando tranquilo ao piano. O que o dissocia é a vida, as relações idiotizantes, celebrativas, ou arrebatadoras que temos pelo caminho. Mas cada canção de Johnny Alf é sempre triste e harmoniosa à sua maneira.

Dolores, que é tola mas sensível, disse, certa feita, depois do amor: acho essa música a mais bonita de todos os tempos, Mave, e riu de uma maneira que se entende como pura. Tocava Eu e a brisa. Era sempre uma mulher lacônica quando extasiada. Então, aquela virou a nossa música.

Havia, naquela pureza, mais delicadeza do que em todo o Charlie Parker e sua sofisticação densa de presídios. Foi uma noite essencialmente triste. Era hora de ir para redação.

Acendi todas as luzes, desci do prédio. Eu tinha uma sorte de crimes fotografados por outra pessoa para analisar e escrever. Mas encontro, sem querer, com Dolores já na saída do prédio. Sempre gostei do beijo longo, de marinheiros em despedidas, como se estivéssemos sendo fotografados, ou como que regados por um bolero antigo. Um homem é para sempre marcado pelos seus programas de rádio favoritos.

Adoraria que me lessem como se ouvissem um bolero antigo, aliás. Me parece o tom ideal. Naquela noite, partimos lado a lado para a redação, que as notícias raramente nos esperam. E ora isso soa arrasador, ora soa bastante tolerável.

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Filipe Pereira
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