Nem todas as cartas de amor são ridículas

Filipe Pereira
5 min readFeb 25, 2024

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Eventualmente perco o sono. Não ocorre sempre. Para uma pessoa que já teve certas pretensões culturais, fujo a dois clichês comuns em grandes estetas, e constato levemente constrangido: durmo muito bem, e sou pouco dado a tristeza. Dou para minha newsletter o nome de melancólico e já me sinto um pouco culpado. Uma espécie de traição intelectual ao leitor, e a mim próprio. Sinto, na verdade, uma beatitude acachapante, atordoante pela vida — um bando de pássaros sob os ares de minha cidade me deixa alegre por minutos, até mesmo horas. A grande poesia, como a grande sensação, deriva sempre da natureza.

Cultivo, então, essa felicidade rara, de bêbedos.

Porém divago. Todo texto meu é esse ensaio, ou crônica, que sobrevive por entre digressões. Coloco os pés para cima, ligo ‘O lado quente do ser’, escrita pelo Antonio Cícero, assobio sem pressa a melodia. É uma grande canção sobre mulheres.

No youtube, o bandido-leitor, o notório assaltante de bancos, conhecido por Marcola, tem um diálogo com sua esposa vazado. Assisto a conversa. Ele está num presídio, com seu aspecto de marginal de cinema nacional dos anos 1970 (de um Babenco do auge, de um Miguel Faria Jr.), ao telefone com sua mulher, que está do outro lado de um vidro. Nos comentários, espectadores ressaltam que há poucas gírias na fala do delinquente, e de como é uma fala fluida, bem embasada. Eu concordo com tudo, meio envergonhado por reconhecer uma qualidade que seja em marginais.

O video mostra o bandido flertando com a mãe de seu filho, como se fossem um casal de namorados. Ela elogia seus braços, ele elogia a sua forma física. Até que eu paro, comovido, por notar que um presidiário pode ter características parecidas comigo: Marcola lamenta a ausência de cartas de amor, entre sorrisos, e de fotos bonitas. A mulher entende o tipo de fotos que ele deseja, e alerta o marido que as fotos err, de putaria, não entram no presídio. Ele lamenta, cabisbaixo.

Temos essa coisa em comum, infelizmente. A tendência natural por putarias, e pelas sentimentalidades literárias. Todo grande amor é cultivado na palavra escrita, cremos. É o Marcos Camacho, e as tais urdiduras do coração.

Por essa eu não esperava. O delinquente rítmico desejando afetividades, como se fosse, não sei, um tuiteiro. Desejando fotos nuas para apimentar a relação. Você se cultiva por toda uma vida, lê alguns livros, tenta aprimorar a escrita e tudo isso para quê, leitor? Note, para soar tal qual um assaltante de bancos um pouco carente, cansado de só olhar para homens. Uma vida de leituras não nos prepararia para esses golpes.

Possuo um defeito desagradável, no entanto, de enxergar em tudo personagens, sinopse, roteiros, conflitos e narrativa. Em tudo isso, me interessa o personagem naquele vídeo. Gosto desse personagem. Desvio de certa tendência socializante de procurar saber como o rapaz articulado do vídeo se torna uma pessoa deplorável, moralmente evitável. É possível que por trás das falas ali houvesse códigos para tratar de outra coisa? Certamente. Porém ignoro, alheio, todos esses códigos. Afeto toda uma inocência fugidia. Opto pela vida, opto sempre pelo que há de humano em qualquer coisa — ainda que degradado, ultrajante.

É como se ele dissesse: Nem todas as cartas de amor são ridículas; também escrevi em meu tempo cartas de amor, etc.

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Parece que estou romantizando uns foras da lei. É o Phillip, ouço algures, em sua verve de professor da fflch.

O rapaz do vídeo comemora que receberá oito livros a cada quinze dias, e quatro revistas da bibliotecária. Onde estão esses personagens em nossa prosa de ficção? Dou um pause, estupefato.

Temos uma das mais fracas ficções policiais do mundo. E tudo isso porque nosso prosador policial é, via de regra, alguma espécie de virgem existencial. Nossos romancistas consideram vivência noturna o ato de frequentar bares e sair com prostitutas. Dos nossos artistas literários dedicados a policiais, um dos últimos com grande vivência urbana foi o Rubem Fonseca, cujos personagens e tramas não raro soavam pouco críveis, inaturais. Por aqui, em livros, os bandidos continuam chamando os polícias de tiras. São os Álvares de Azevedo da ficção negra. Sorrio pro lado qual o Ed Mort, escrito por um raro virgem existencial que substituiu muito bem a experiência real por leituras e talento inventivo.

Mas nem sempre temos essa sorte.

Mas retorno ao ponto. Uma das lições da existência real é que a realidade é inverossímil.

Algumas pessoas acreditam que reconhecer a humanidade é absolver um indivíduo de todos os crimes humanos e de graves pecados divinos. Desculpem, mas é um engano. De todo o vídeo em que o Marcola conversa calmamente, exalando um raro carisma, tiramos duas lições: é um bandido incorrigível, mas tem a profundidade psicológica que só encontramos na rara ficção. Estão lá as camadas, os conflitos, os traumas, a vaidade. Quando ele descobre que querem que escreva um livro de sua vida, ele sorri como o bom Al Capone preocupado com a sua calvície. Ele diz, repleto de orgulho, que toda a sua vida esteve rodeado por mulheres, e quer retratar seu lado Casanova, grafá-lo para sempre nas páginas de um livro. Como no Goethe: luz, quero luz; ele parece dizer.

Como figuras assim não entram em nossa literatura? Qual a dificuldade, escritor? Tudo o que desejo é ter uma casa, criar um ou dois filhos, amar sem pressa uma esposa. Quero distância de qualquer arte, mas vejo um figura desses pedindo, implorando para ser retratado ainda que com outro nome, ainda que de outro modo, e já faço anotações para um romance. Temos um grupo de autores dos mais desinteressados por pessoas que já se viu em muito tempo; e se me pedissem uma definição dessas suas literaturas engajadas, eu diria: é um pouco como a arte de se desinteressar pelas pessoas. Pelas pessoas reais, digo. Essas que soam inverossímeis à primeira vista. Quase toda literatura brasileira recente é composta por desabafos pessoais onde o enredo é uma metáfora para o fim de se vingar de uma ex-namorada; ou de tratar de uma causa.

Aos poucos não se aborda mais nem os tipos. Não há mais tipos na ficção recente. O figura obcecado por vídeos de whatsapp, que acredita em toda teoria da conspiração que surge ao poente; o fitness, o coach, os concurseiros. Se nem os tipos pequenos são registrados, imaginem os bandidos tipicamente brasileiros, frutos de toda uma história recente?

Ver o Marcola dando lições de moral no seu filho depois de assaltar algo em torno de vinte bancos é uma fina ironia que nossos escritores ainda não conseguem capturar. Eles achariam caricatural demais. Aparentemente temos uma longa vida ainda lendo sobre bandidos que são livremente inspirados em Rottweilers, enquanto desejamos ler os das cartas de amor, todas elas ridículas, claro, mas sem abdicarem de ser cartas de amor.

Queremos antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

Esse lirismo das cartas de amor alternando juras e códigos sobre bandidagens no meio. Admito, sem escrúpulos, essa sede de vida real.

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